domingo, 27 de fevereiro de 2011

omnibus

A moça mentalmente transtornada. O menino que vende halls. O homem velho que viaja em pé. O motorista que sonha ser Michael Schumacher. Os estudantes brincalhões. O jovem que se dispõe a carregar sua mochila. O cara que oferece seu lugar à menina bonita. A menina bonita. O cobrador falastrão. O carona, o corredor sem espaço, o braço estendido.

Os olhares  os olhares os olhares. Os cheiros todos: suor, colônia, flatulências. As curvas bruscas. Os fones de ouvido. O medo antecipado daquele declive. A proximidade indesejada. Os que falam alto ao celular.  Os que lêem livros. Os que jogam videogame. Os que dormem. Os que se espalham.

As telas embaçadas em manhã chuvosa. Marcas de dedos, desenhos, gotas alongadas. No limite de suas molduras, os carros, as faixas, os horizontes. Rostos desconhecidos sempre iguais.


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

cabeça barbuda

Feito no Corel Photo Paint




saul

Pedras, musgo. Nuvens, horizonte. Cordas, percussão. Saul acordava pedindo aos grandes espíritos que talvez governem o universo uma prova de seu poder. Milagres, Saul pedia. Sentado em padmásana, Saul acreditava que misturando o álef-beit com as sílabas sânscritas obteria a transcendência. Afinal, estava na trilha de grandes mestres. Talvez na de todos e, como bem disse um deles, na de nenhum.

Saul não era do tipo que veste bata indiana, ou que tatua logogrifos arcanos, nem curtia longos jejuns. Buscava uma síntese pessoal das escolas de mistérios, mas para consumo próprio. Não advogava: não profetizava: não pontificava. Via o Ein-Sof cabalístico como essencialmente igual ao Tao dos chineses e este, um outro nome para o indiano Brahman. Conhecia as sutilezas etimológicas e tinha profundo respeito pela complexidade conceitual dos textos sagrados – que lia no original.

Saul era o figura, o sábio, o estranho. Com o tempo e os títulos, virou citação frequente em artigos de estudiosos renomados. Deixou-se absorver pelas páginas até viver dentro delas.

Pedra, musgo. Nuvens, horizonte. Cordas, percussão. Saul se esqueceu do milagre ou não?


sábado, 19 de fevereiro de 2011

universo

Povoam os ângulos mais distantes desta vastidão escura, este universo antigo, coisas que pulsam energia, ralos por onde a luz escoa, impossíveis névoas de estranha matéria.

Este mesmo planeta onde vivo é bola azul improvável, cercado de perigos terríveis, grandes pedras em vôo livre, atratores mal-humorados...

E daqui se vê tanto... espetáculos de cores, jatos de substâncias, explosões que inseminam o vazio.

“Vazio”...

Cada pequeno grão de nada nos espaços siderais contém portais selados para outras paralelas possibilidades...

E, enquanto se expande a colcha estrelada ao longo de bilhões de anos, minha imaginação não pode deixar de se pasmar ante a assombrosa constatação de que, para os homens sérios, importante e belo são adjetivos que se adequam apenas ao que cabe no interior de suas cercas.


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

davi

Quando a perplexidade de Saul deu lugar a qualquer coisa semelhante à reverência pela presença de espírito do moleque Davi, ele o vestiu com suas armas. Espada, armadura, couraça, capacete. Mas Davi simplesmente não podia andar com aquilo, pois era-lhe desconfortável, uma vez que nunca usara tais apetrechos. E Davi se despiu da espada, da armadura, da couraça, do capacete. Foi em frente, ao encontro do gigante, portando o cajado de pastor e uma funda improvisada com o alforje e cinco pedras lisas de rio. O que houve então você já sabe.
Davi não se valeu das forças de outro homem quando seguiu em direção ao seu destino. É verdade que cinco pedras de rio não se comparam à espada como aparato bélico. Mas a lógica do menino que já havia derrotado - à unha -  o leão e o urso não se submetia à ciência militar. A certeza de que o Senhor dos Exércitos lhe daria, no momento certo, a forma adequada, era suficiente para ele. Sem estratégias, sem treinamento prévio, sem jeitão de guerreiro, sem formatação de seus pensamentos: espada, armadura, couraça, capacete. Ao invés, colheu pedras de rio, vulgares, desgastadas ao ponto de se tornarem lisas, seixos trabalhados com paciência, descansados na fluidez da águas.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

primeiro passo

Por trás dessas névoas de normalidade que todos engolimos existe o ambiente das caras verdades, aqueles espaços em que nos soltamos e respiramos de fato. Na neblina do dia-dia-dia se vive à espreita de novidades, em meio ao tédio que abocanha.  Ou às escondidas, contraindo o ser. Difícil coisa: acessar o autêntico. Há os que tentam solucionar o impasse seguindo profissões arquetípicas como a de músico, ator, professor, médico, sacerdote. Outros experimentam dar ao que fazem um sentido que vá além do trivial.

Claro, existem aqueles momentos em que tudo o que desejamos é esquecer, e para isto as prateleiras estão apinhadas de opções, um universo de possibilidades lúdicas, dos tabuleiros quadriculados de pixels às substâncias que chovem sobre os neuro-receptores. Acontece que isto não reconfigura a realidade. Têm seu lugar e sua hora, mas supor que esses instantes de escape representem liberdade é tolice... expediente-happy hour... semana-finde... trabalho-férias... neste esquema somos peças mesmo, simples assim. O que pode determinar um passo para fora?

Bem, não é meu propósito responder, mas isso é uma de minhas questões. Talvez seja a sua também.

Este espaço é para mim um experimento de liberdade, com toda a carga de contradição que tais palavras contêm. Mais um blog na blogosfera. Que diferença faz? E que importa?  “Desvio”... Caminho tangencial, curva imprevista, atalho. Só amanhã saberei a face desta trilha. Se é que saberei.

Seja bem-vindo(a).