quinta-feira, 24 de março de 2011

retratos

 Houve tempo em que fazer o retrato de uma pessoa era tarefa para artistas profissionais. Apenas nobres, alto clero e burguesia ascendente tinham meios para financiar tais obras, que perpetuavam os rostos e atitudes idealizadas dos representados. Sabemos como era a face de Filipe II, conhecemos a expressão sinistra do papa Inocêncio e temos registrado o sorriso de uma mulher cujo retrato é muito mais importante para a História do que sua vida (mesmo seu nome é motivo de controvérsia). Ainda que alguns adoráveis rebeldes (como este) tenham pintado pessoas do povo, jamais saberemos quem esses eram, já que apenas serviam de modelo. Típico caso em que a personalidade do artista sobrepõe-se à da pessoa representada.

A máquina fotográfica forçou uma ressignificação da pintura, por um lado, e tornou mais fácil produzir retratos, por outro. Já não era privilégio de ricos ter sua imagem “eternizada”, mas tirar fotos ainda era um ritual complexo - o tempo de exposição necessário para que a luz impressionasse o filme era alto, o que exigia total imobilidade por parte dos retratados, ainda mais do que com a pintura, já que um movimento fora de hora poderia arruinar as pretensões estéticas de ambos, fotógrafo e cliente .

Hoje, com câmeras digitais portáteis é possível fazer retratos a todo momento. Já não se registra o próprio rosto por megalomania. Estamos presenciando a mais radical ressignificação do retrato: nem expressão místico-publicitária para poderosos, nem programa de domingo para famílias.  Mas compulsão.  Veja aqui.



segunda-feira, 21 de março de 2011

caçador 2

Caneta sobre papel sulfite.


palavras

Acaso minha palavra é sêmen que agite alguma profundeza? Tem em si o valor das que são ditas como espada afiada? Ou o preço daquelas que se guarda?

Palavras são jogos radicados na imaginação. Por mais técnicas, denotativas, fáticas ou funcionais que possam parecer, suas origens repousam  nas interpretações poéticas feitas por seres humanos que ainda não haviam sido adestrados no paradigma científico. Como demonstram todos os escritores que foram capazes de deixar alguma marca no mundo, palavras são moldáveis. Nomes pessoais aos poucos deixaram de representar aquilo a que se prestavam nos inícios, ainda que reste algo do sabor original, como uma camada arqueológica. Pereiras, oliveiras, selvas, pedras. Vitais, patriotas, guerras, campos. O significado social do sobrenome  sobrepuja a imagem poética, e já não vemos a árvore ou o bicho que está por trás e por baixo.

Mas deste modo nos perdemos do significado em si. Desconectando a percepção da imagem deixamos de ver as palavras, aceitando qualquer significado alternativo que consiga vingar. “Paz” passa a carregar nuances de conflito, “amor” começa a representar situações de egoísmo, “democracia” é aceito como competição de interesses minoritários, “História” assim, com agá grande, é considerado como expressão da verdade sobre o passado, quando há de fato muito mais histórias, e até estórias, em seu bojo.

Um mundo que confina as palavras a uma série restrita de conotações, através do politicamente correto, ou dos protocolos, ou do bem-pensar, é um mundo semelhante à distopia de Orwell, “1984”.  Pode ser clichê, mas trata-se de uma história em que um governo central vigia os cidadãos por meio de câmeras-telas presentes em todos os lugares, sob o pretexto da segurança. O líder supremo, que ninguém vê exceto pelos filmes oficiais e pelos cartazes onipresentes, é o Grande Irmão. A política é baseada na guerra e no medo da guerra, que dá ao governo a justificativa para controlar todos os passos do cidadão e, que é o ponto que importa para este texto, para reescrever jornais, revistas, livros, quando não destrói sumariamente tiragens inteiras de documentos capazes de contradizer a versão oficial. Em nossa realidade ocorre algo mais sofisticado que a destruição do material subversivo. São definidos  significados-chave, difundidos por meio da indústria cultural e permite-se aos discordantes que participem do debate, tentando contribuir com percepções diferentes. Agora, quem terá paciência de navegar o oceano semiótico com bússolas próprias se a escola, a tv, a publicidade, o cinema, a imprensa, etc já oferecem interpretações prontas para o consumo? Na balbúrdia de vozes o que é perigoso para o status quo geralmente é soterrado ou cooptado a fazer parte da Cultura (sim, com cezão), onde poderá ser dissecado por estudiosos, ou apreciado como cult, ou vendido a altíssimos preços.

Ou, como no caso das palavras de um certo judeu do primeiro século desta era, ganhará a possibilidade de alcançar todo o planeta e influenciar de tal modo o imaginário da humanidade, que até mesmo os que discordam de suas principais afirmações se sentirão obrigados a admirá-lo. Mas veja o preço: ter seu alcance revolucionário drasticamente reduzido ao ser rotulado como “religião”, “filosofia”, ou qualquer outra tag que impeça seu conteúdo de ser compreendido.

As palavras são preciosas, pois definem a realidade e as possibilidades. Também são perigosas para o sistema, já que condensam trilhas alternativas. Não é por outra razão que estão sendo esvaziadas e substituídas por uma cultura de imagens – quanto mais surpreendentes aos sentidos melhor... para quem?

Minha questão aqui é a seguinte: se as palavras já não impactam tanto, o que o fará?

Sinta-se livre para responder. Com palavras ou de outro modo...



domingo, 20 de março de 2011

reino dos céus

Espaços em que sinta o espaço abraçar-te. Construções que contrariem a expectativa de ângulos retos, conduzindo-te por corredores  amplos, porém curvos,  paredes não necessariamente paralelas. Entrar no edifício pela janela, sair por tirolesas. Vento abundante, luz natural, água corrente, árvores, tudo dentro. Andares que giram, painéis sob a água. A cidade ganhando ares de playground, parque ou obra de arte. Andar descalço na rua, tapetes de velcro que te fixam às paredes. Ir ao trabalho de bike ou a nado. Trabalhar brincando. Menos roupa em dias quentes, liberdade para a nudez. Vestir-se de modo que expresse quem você é. Fazer performances a qualquer hora, em qualquer lugar, dessacralizando os “lugares certos” para a arte: música ao vivo no interior dos bancos (que ainda existiriam no começo, mas seriam demolidos em todos os sentidos); dança individual nas florestas; body painting nos saguões dos tribunais. Hospitais repletos de cor, vento fresco, vida e juventude. Cura pelo toque. Pessoas felizes, extravasando em alegria. O casal que namora nas matas protegido, não repreendido, pelo policial (que também ainda existe, mas seria uma fímbria até o sumiço completo). Nenhuma fiscalização. Nenhum documento de identidade. Nenhum dinheiro (o que você faria se o tivesse faça-o sem ele...). O desmantelamento do sistema educacional, para que o conhecimento impere, ao invés dos papéis. O fim das empresas. A aurora da cooperação.  A reinterpretação da História. A livre expressão das belezas. Beleza, beleza em todo canto...



segunda-feira, 7 de março de 2011

condição

Eis que sou.

E, coladas ao eu-ser, as gerações.

Pelos muros que saltei, pelos canais que a nado cruzei, era de se esperar ao menos um gosto de liberdade.
Pois sim...

Os traços de todos os meus inimigos
(os guardiões de fortalezas, os empedernidos alcaguetes, os encadernadores de pessoas)
estão em mim, e não como mera recordação.

Eis que ser tem menos daquela qualidade mística e desarrazoada que eu imaginava e simulava.

Mas se eu mesmo não chego incólume ao pico das autenticidades, como explicar os milagres então?

Já que minha natureza não é capaz de sustentar originalidade nem interesse altruísta ou arte

então de onde brotam essas surpresas que alargam meu mundo de vez em quando?  



domingo, 6 de março de 2011

novidades

Rodeados que estamos pelo discurso da inovação, fica até difícil perceber as coisas conforme o escritor do Eclesiastes: "nada há novo debaixo do sol"... Especialmente no que se refere à internet  e computadores. Lançamentos de máquinas surpreendentes (capazes de mudar toda a sua percepção da existência!), atualizações de sistemas operacionais, redução de tamanho e peso dos gadgets, sem contar, obviamente, os apelos da publicidade!

Existe a pressuposição de que, se você tem até 30 e poucos  anos, é necessário não somente que possua computador, e-mail e conexão à internet (pois tais se exige também dos demais seres humanos que caminham sob o sol nesta época), mas ainda perfis constantemente atualizados nas principais redes sociais, ao menos um blog (onde você pode informar à humanidade sobre as mais recentes voltas de seu pensamento), um smartphone, um tablet pc, enfim...

E o curioso é que tantos meios magníficos não se traduzam necessariamente em um nível mais alto de pensamento. Senão, vejamos. O tema mais pesquisado no google é pornografia. Quase todo e-mail que recebo é de piadas. Grande parte dos scraps, posts e tweets da vida versam sobre nulidades e vaidades. Compete-se para ter o maior número de “amigos” ou “seguidores” (que expressão infeliz...). Temas e motivações tão antigos! Acabo de saber por uma revista que este ano o feicebúqui se tornará o maior site de prostituição do mundo. Claro, são os usuários, não o Zuckerberg. Mas é este o ponto. Somos a mesma humanidade de sempre, a despeito da sofisticação dos recursos tecnológicos disponíveis. Será que conseguimos fazer algo realmente novo, com ou sem gigabytes de memória?